quinta-feira, 14 de novembro de 2013

rabiscos em prosa




Amor guardado

Por Cláudia Vanessa Bergamini


A lembrança que nunca fora apagada, tampouco refutada da memória de Mariana, veio à tona naquele dia, quando, depois de 19 anos, encontrou Carlos.
Era uma noite fria. Marcaram o encontro às escondidas e decidiram que, pelo menos por uma noite, reviveriam as emoções de outrora. Ele, ansioso, imaginava como seria tê-la de novo em seus braços, sentir o gosto dos lábios antes tão desejados, tocar o corpo com a delicadeza do passado e a veemência que a saudade impunha.
Por outro lado, ela estava entre o medo de reencontrar o amor - e não poder mais desfrutá-lo - e o desejo que a consumia. Sabia que seria uma experiência única, uma noite apenas. No entanto, difícil era controlar os desejos do coração, a vontade do corpo de se entregar mais e mais e mais...
Chegada a hora, tocou no quarto onde ele a esperava. Dezenove anos separavam o casal. Tempo que trouxe diferenças entre suas vidas, trouxe um abismo de histórias que, para serem contadas, necessitariam de outros tantos anos. Porém, esse tempo não foi suficiente para sufocar o que aqueles corpos sentiam. O abraço apertado e o beijo desesperado indicavam eu os amantes ainda se pertenciam.
Tremores, abraços, beijos, enfim... o sexo, tudo envolvia aquela noite de entrega, de amor findo, de horas que Mariana gostaria de pensá-las perenes. Embora soubesse que  durariam somente o que o sol permitisse. Ao amanhecer, cada qual voltaria à vida Isolda, sozinha e somente o gosto do beijo e o desejo do sexo restariam.
Só o desejo...desejo...desejo...
A promessa de um novo reencontro, a certeza de que já não poderiam mais esperar outros 19 anos, por isso, a promessa de que os dois voltariam a se entregar.
Ela, de imediato, passou a planejar o próximo momento em que estariam juntos, passou a sonhar com o modo como se entregaria a Carlos. De como beijaria sua boca para sentir os abro tão desejado daquele beijo. Trocaram mensagens,, promessas e ele, desculpas.
A cada dia uma desculpa era dada por ele a fim de protelar o próximo encontro. Porque era agricultor e estava na colheita do milho, ele lhe falava sobre a vontade de revê-la, de tocá-la. Mas falava também sobre a impossibilidade de sair do ambiente rural. Viagens para vender o cereal dourado, dias de estiagem em que não se podia descuidar da terra.
Desculpas... desculpas... desculpas...
Dois meses depois do reencontro as mensagens cessaram, mas o desejo continuava acompanhando Mariana. Em busca de compreender todas as ressalvas que Carlos havia colocado para evitar outro encontro, ela decidiu refletir sobre o que sentia. Já não poderia fugir daquele sentimento. Não poderia negar que naquela noite havia traçado sua condenação eterna: a de viver sufocada por um amor sem perspectiva, por uma vida de dissabores amorosos. Viver como num palco, encenando a personagem que ela não era. Fingidora, sofredora, assim estaria ela condenada a seguir seus dias.
A terra se fez fértil, o milho mais uma vez brotou, a saudade amarga do amor ausente se manteve no peito de Mariana. Dialeticamente os dias foram seguidos por novas e novas colheitas, Carlos seguiu seu caminho, só. Pensava nela, mas já não podia, nem queria buscá-la.
Mariana calou-se. Preferiu o silêncio a falar sobre o passado que a incomodava. Estranha é a cabeça das pessoas, assim como é estranho o coração. O tempo e o silêncio sufocaram aquele amor e restaram as lembranças, as promessas nunca cumpridas e o sabor do beijo que, para sempre, habitou os lábios de Mariana.


                                                       Alegria interrompida

Por Cláudia Vanessa Bergamini

Sonhava há muito tempo com aquela boneca. Vira na vitrine da loja em uma tarde quando passeava com a mãe. Linda, vestida de noiva, unha levemente rosada, lábios vermelhos e maçãs escarlates. Assim era seu sonho, seu desejo.
Vitória pediu à mãe. Esta lhe informou sobre o tempo certo para o presente. E então, a expectativa da menina cresceu, passou a contar os dias para a festa das crianças. Como já era setembro, sentiu que a espera até o próximo mês seria possível.
Na data tão esperada, abriu o embrulho que lhe entregaram seus pais. Nele havia um conjunto de panelinhas e outros apetrechos, os quais simulariam o cotidiano de uma dona-de-casa ou cozinheira.
A menina baixou a guarda. Agradeceu, sorriu um riso amargo e, por dentro, um pranto sofrido, silenciosos, decepcionado, o sofrimento de quem esperava encontrar no embrulho a noiva de bochecha escarlate.
Resiliente e decidida que era, confiou que seu desejo seria, enfim, satisfeito no natal. Mais de dois meses e a noite tão esperada chegou.
A grande árvore, enfeitada com luzes e outros adornos, indicava que, para as crianças, seria uma festa com muitos presentes, por conseguinte, de muitas alegrias. No momento exato, os bracinhos finos de Vitória e suas deliciadas mãozinhas estenderam-se para receber o embrulho colorido. Ansiosa, julgou que, pela aparência e formato, sua musa de braço, lábios vermelhos e unhas bem feitas viria então para completar sua alegria.
A menina abriu o embrulho. Lá estava ela. Bela, imponente, com seu traje de noiva. Observou cada detalhe, a renda delicada do vestido, o contorno das pedrinhas da grinalda, o cetim que envolvia o corpo da boneca. Vitória estava feliz! Não poderia parar de olhar sua nova amiguinha.
No dia seguinte, brincou com a noiva e, em sua mente, passavam flashes sobre como seria o dia quando ela seria a noiva e teria seu príncipe encantado. Anos se passaram, Vitória cresceu e diminuíram suas vontades de brincar com a noiva. Ao olhar a boneca, no entanto, sentia que o desejo de um dia vestir-se como ela aumentava em seu peito.
Queria sim ser uma noiva. Ter a bochecha marcada pelo blush, os lábios vermelhos à espera de um beijo que selasse o amor eterno. Em seus devaneios de menina, brincando com sua noiva, Vitória construiu a ideia de que o casamento é tão mágico e perfeito quanto o vestido de sua boneca.
Um dia, o príncipe bateu à porta de Vitória. O amor chegou e a brindou com momentos de alegria cada vez mais intensos.  Depois de muitos planos, promessas e projetos, era chegada à hora de se casar.
Pensava ela em como seria ser a noiva tal qual a amiga de infância.
Escolheu a costureira e levou o modelo. Queria tudo exatamente igual, os detalhes de grinalda, o cetim, a renda. Nada poderia ser diferente do vestido da boneca.
Provou, uma juste aqui, outro ali e o dia tão especial chegou. Vitória estava radiante, menos pelo lindo vestido e maquiagem e mais pelo brilho de seus olhos.
Chegou diante da igreja, alguém a ajudava a subir os degraus, sabia que seu príncipe já a esperava. Ouviu distante um estrondo, nem sequer se virou para saber de que se tratava. Na rua, passava um carro em alta velocidade e outro o seguia. Outros estrondos foram ouvidos.
Naquele instante, Vitória virou-se para, também, descobrir o que acontecia. Somente aquele grave estrondo poderia desviar a atenção da moça. Do outro lado da rua, alguém atirou. O som forte foi ouvido por todos que esperavam Vitória no altar. O som arrebentou no peito da noiva, foi sentido por ela, seu peito coberto pelo branco do cetim ficou manchado pelo vermelho do seu sangue.
Os lábios foram perdendo a cor, as bochechas foram ficando brancas. Os olhos perderam a vivacidade, as mãos delicadas caíram. Vitória estava morrendo. O jovem com quem se casaria correu até ela e houve tempo ainda de vê-la vestida com o traje dos sonhos.
No quarto de Vitória, a mãe deixou a noiva em cima da cama. Não gostava de olhar para o vestido da boneca, porque lhe vinha à memória a filha manchada de sangue. Mas não poderia jamais deixar de olhar para aquele pequeno objeto sem vida sem se lembrar das mãos delicadas que brincavam, que cuidavam e deram vida àquela criatura.



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